quarta-feira, 31 de julho de 2013

O DESEJO DE EMBRANQUECIMENTO E A REDENÇÃO DE CAM

"Vede a aurora-criança, como sorri e fulgura, no colo da mulata - aurora filha do dilúvio, neta da noite. Cam está redimido! Está gorada a praga de Noé!"

Olavo Bilac - Fantasio na Exposição. II - A Redempção de Cham
Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 5 de setembro de 1895, p. 1

Quadro: A redenção de Cam
Pintura a óleo sobre tela realizada pelo pintor espanhol Modesto Brocos em 1895 q



Caro leitor, você sabe quem foi Cam? Foi um dos filhos de Noé que, segundo o registro bíblico, zombou da nudez do pai enquanto estava bêbado. O título da obra é uma referência ao episódio. Na ocasião, Noé proferiu uma maldição ao seu filho e a todos os seus descendentes, conforme relatado no livro do Gênesis. 
Noé profetizou que o mesmo seria "o último dos escravos de seus irmãos". Alfredo Bosi relata que surgiu desta passagem bíblica a crença popular de que os descendentes de Cam seriam os povos de pele escura de algumas regiões da África, além das tribos que habitavam a Palestina antes dos hebreus. 
A crença serviu por muito tempo como argumento de ideólogos e mercadores como instrumento para validar e justificar o tráfico de escravos africanos para o Brasil e outros lugares do mundo. O pecado de Cam seria, assim, o evento fundador de uma situação imutável e a justa punição divina de todo um povo.[1]
A obra de Modesto Brocos retrata  uma pobre habitação com três gerações de uma mesma família:  a avó, negra, a mãe, mulata, e a criança, fenotipicamente branca. A matriarca, com semblante emocionado, ergue as mãos aos céus, em gesto de agradecimento pela "redenção": o nascimento do neto branco, que será poupado das agruras e das memórias do passado escravocrata. 
O argumento repetido muitas vezes pode se tornar uma espécie de verdade. Até para genialidades como Olavo Bilac que, pelo exposto em seu texto, mostrou que concorda com a teologia da escravidão. Essa é uma página que envergonha bastante a igreja católica e recentemente foi reacendida pelo deputado "chapinha" Feliciano. É difícil pensar ao certo o porquê de pessoas como Feliciano defenderem até hoje um argumento teológico que se mostrou obsoleto desde a época da libertação dos escravos. Talvez porque, aqui no Brasil se valorize muito a questão da fenotipia eurocêntrica, ao ponto do próprio deputado ter que fazer chapinha, porque em tese ele também seria um dos amaldiçoados de Noé por mais que tenha pele miscigenada.
Até nos dias atuais, pelo pensamento de redenção, homens e mulheres negros correm atrás do embranquecimento de sua prole, como se isso resgatasse a autoestima da sua família, da sua vida, da sua consciência. Um dia entenderão que fatores externos jamais resolverão coisas não resolvidas internamente. Espero sinceramente que ainda haja tempo para que redimam sua própria culpa por terem corrido atrás do vento, quando a redenção esteve sempre disponível e era somente eles que poderiam dar a si mesmos. 



[1] http://pt.wikipedia.org/wiki/A_Redenção_de_Cam

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