domingo, 28 de outubro de 2012

Morfeu era esquisofrênico? - O gênio e o louco



por Sergio Arthuro Mota Rolim*


Esquizofrenia: sonhando enquanto acordado





Uma das primeiras referências conhecidas sobre sonhos vem da mitologia grega. Nix, a deusa da noite, era a mãe de Hipnos, Lissa e Tânatos, que representavam a loucura, o sono e a morte, respectivamente. Hipnos foi pai de Morfeu, o deus dos sonhos (Campbell, 1970). Há, portanto, uma relação entre os sonhos e loucura, desde a antiguidade, através das personificações de Morfeu e sua tia, Lissa. Esta relação é ainda presente nos dias de hoje: os hipnóticos (medicamentos que induzem o sono) foram assim chamados em homenagem a Hipnos, enquanto a morfina (um analgésico opióide que altera a consciência), em referência a Morfeu.


Durante o Iluminismo e os tempos modernos, a relação entre os sonhos e a loucura também foi discutida: Kant dizia que “um louco é um sonhador acordado”, e Schopenhauer levantou a hipótese de que “um sonho é uma psicose de curta duração, e a psicose é um sonho de longa duração”. De acordo com ambos, Wundt também sugeriu que “nós podemos experimentar nos sonhos todos os fenômenos que encontramos nos hospícios”. Mais recentemente, Sigmund Freud, em seu livro A interpretação dos sonhos, postulou que a psicose é relacionada a uma intrusão anormal de uma atividade onírica em um estado de vigília, como se os esquizofrênicos estivessem sonhando acordado (Freud, 1900). Emil Kraepelin, talvez um dos maiores opositores das ideias de Freud, concordava com o pai da psicanálise nesse aspecto (Heynick, 1993).


Desde o final dos anos 50, com a descoberta dos primeiros agentes antipsicóticos, ficou cada vez mais claro que os pacientes esquizofrênicos têm uma atividade dopaminérgica aumentada em algumas vias neurais (Awouters & Lewi, 2007). Baseado nisso, diversos modelos animais de esquizofrenia têm sido desenvolvidos. Em um trabalho recente, Dzirasa e colaboradores (2006) estudaram os padrões eletrofisiológicos de um modelo como esse: nos animais controle, o estado de vigília e sono REM (SREM, do inglês Rapid Eye Movement ou movimento rápido dos olhos) poderiam ser separados por análise espectral, uma vez que as oscilações mais rápidas são mais proeminentes durante o estado acordado, enquanto os ritmos mais lentos, prevalecem no SREM. Nos animais “esquizofrênicos”, no entanto, a vigília e o SREM já não podiam ser dissociados pelo seu conteúdo espectral, proporcionando, por conseguinte, um correlato fisiológico de que a vigília e o SREM são estados que estão entrelaçados na esquizofrenia.


Após estes resultados iniciais, Dzirasa e colaboradores (2006) observaram também que o SREM pode ser suprimido pela diminuição da transmissão da dopaminérgica. Estas observações sugerem, portanto, um papel importante da dopamina na regulação do SREM. Além disso, sabe-se também que o SREM é a fase do sono que está mais associada aos sonhos (Hobson, Pace-Schott & Stickgold, 2000), e que depende da ativação de receptores da dopamina do tipo D2 na via mesolímbica, ou seja, os mesmos circuitos ativados durante a psicose (Joyce & Meador-Woodruff, 1997).


Uma vez que evidências eletrofisiológicas apontam para padrões semelhantes entre a vigília e o sonho na esquizofrenia, as observações mencionadas acima estão de acordo com Kant, Schopenhauer, Wundt, Freud e Kraepelin: os loucos seriam aqueles que sonham acordados. Essas ideias estão relacionadas com a mitologia grega: Morfeu e Lissa, isto é, sonho e loucura. À luz destes argumentos, ficamos propensos a perguntar: Morfeu era esquizofrênico? Provavelmente sim, mas nem sempre…






Sonho lúcido como o oposto da esquizofrenia: vigília durante o sonho


A esquizofrenia, particularmente do tipo hebefrênica, começa no início da adolescência – Hebe era a deusa grega da juventude – com uma notável desorganização do comportamento. Ela evolui com grande prejuízo cognitivo, produzido por uma extrema atrofia cortical, principalmente frontal (Semkovska, Bédard & Stip, 2001). Apesar do fato de que novas drogas estão sendo desenvolvidas, com menos efeitos colaterais, a maioria dos processos patológicos relacionados com a esquizofrenia ainda permanecem desconhecidos.


No entanto, uma espécie de estado mental chamado de sonho lúcido (SL) (van Eeden, 1918) parece estar inversamente relacionado à esquizofrenia (Figura 1). O SL se caracteriza pela consciência do sonhador de estar sonhando durante o sonho. A possibilidade de tornar-se consciente do sonho durante o sonho foi descrita pela primeira vez por Aristóteles em seu livro Sobre o sono e a vigília. No entanto, o SL foi primeiramente verificado de forma experimental por sinais oculares pré-combinados: o voluntário é instruído a mexer os olhos para direita e esquerda, numa quantidade pré-determinada (Laberge, 1980; Laberge et al, 1981; Laberge & Dement, 1982). Dessa forma, estes sinais, que são realizados pelo sonhador lúcido durante o SREM, são então registrados por polissonografia (Brylowski et al, 1989; Tang et al., 2006) com a finalidade de confirmar ao experimentador que o sonhador alcançou um SL.


Como dito anteriormente, propomos que o SL é conceitualmente o oposto da esquizofrenia: se esta parece ser um sonho enquanto se está acordado, o SL pode ser um estado de vigília durante o sonho (Figura 1 – A, B). Isso pode ser melhor entendido se estudarmos o córtex pré-frontal: em pacientes com esquizofrenia, esta região parece ser uma das mais danificadas (Semkovska, Bédard & Stip, 2001). Durante o SREM, há uma desativação do córtex pré-frontal dorsolateral, o que poderia explicar a diminuição da auto-consciência durante o sonho, pois normalmente durante os sonhos não sabemos que estamos sonhando (Maquet et al., 1996). Os sonhos são também caracterizados por uma gama de estados mentais semelhantes às alucinações (sensações e percepções geradas internamente) e delírios (falta de julgamento racional), que são característicos da esquizofrenia (Hobson, Pace-Schott & Stickgold, 2000).


De acordo com essas observações, foi levantada a hipótese de que um aumento na atividade frontal durante o SREM estaria relacionada a um episódio do sonho lúcido (Muzur, Pace-Schott e Hobson, 2002). Em consonância com isso, nosso grupo relatou que os SL estão associados com aumento do ritmo gama na região frontal (30-50Hz) (Mota-Rolim et al., 2008), o que também foi observado por Voss e colaboradores (2009) (Figura 1-C). Assim, aventamos a possibilidade de que a ativação da região frontal, com estimulação magnética transcraniana durante o SREM, poderia desencadear um episódio de SL, experimento esse que pretendemos realizar no nosso laboratório. Nosso grupo de pesquisa também está realizando um estudo epidemiológico sobre sonho e sonho lúcido na população brasileira. O estudo consiste no preenchimento de um questionário on-line, que para ser acessado basta visitar o endereço: http://www.cb.ufrn.br/sonho/


Desta forma, propomos que o estudo do SL pode ser útil para entendermos mais sobre a esquizofrenia, porque vemos esses fenômenos como simetricamente opostos (Figura 1). Os sonhos lúcidos também poderiam ser importantes para as pessoas que sofrem de transtorno de estresse pós-traumático ou depressão grave, que apresentam pesadelos recorrentes, porque se tornar lúcido durante um pesadelo poderia causar menos ansiedade. A investigação científica dos sonhos, dessa maneira, poderia ser importante para o estudo da consciência bem como de doenças que perturbam a consciência.






Esquizofrenia Sonho Lúcido


A- Conceito Sonho durante a vigília Vigília durante o sonho


B- Fenomenologia Patológico Fisiológico


C- Neuroanatomia Hipofrontalização Generalizada Hiperfrontalização Localizada


Figura 1. Diferenças entre esquizofrenia e Sonho Lúcido, de acordo com o conceito (A), a fenomenologia (B) e a neuroanatomia (C).






*Possui graduação em Medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2004), com iniciação científica na área de sono, memória e ansiedade. É mestre em Neurociências pela Universidade Federal de São Paulo – Escola Paulista de Medicina (2007), trabalhando com a influência dos ritmos biológicos no sono e na memória. Atualmente, é estudante de doutorado da UFRN em parceria com o Instituto Internacional de Neurociências de Natal – Edmond e Lily Safra, e pesquisador do Laboratório do Sono do Hospital Universitário Onofre Lopes, onde pesquisa modelos de regulação do sono e sonhos.


Referências:


Awouters F.H. & Lewi, P.J. (2007). Forty years of antipsychotic drug research: from haloperidol to paliperidone, with Dr. Paul Janssen. Arzneimittelforschung. 57(10), 625-32.


Brylowski, A., Levitan, L. & LaBerge, S. (1989). H-reflex suppression and autonomic activation during lucid REM sleep: a case study. Sleep, 12(4), 374-8.


Campbell, J. (1970). Myths, dreams and religion. New York : EP Dutton & Co.


Dzirasa, K., Ribeiro, S., Costa, R., Santos, L.M., Lin, S., Grosmark, A., Sotnikova, T.D., Gainetdinov, R.R., Caron, M.G. & Nicolelis, M.A.L. (2006). Dopaminergic control of sleep-wake states. The Journal of Neuroscience, 26(41), 10577-10589.


Freud, S. (1900). The interpretation of dreams. London : Encyclopedia Britannica.


Heynick, F. (1993). Language and its dream disturbance. Toronto : Wiley.


Hobson, J.A., Pace-Schott, E.F. & Stickgold, R. (2000). Dreaming and the brain: toward a cognitive neuroscience of conscious states. Behavioral and Brain Sciences, 23, 793-842.


Joyce, J.N. & Meador-Woodruff, J.H. (1997). Linking the family of D2 receptors to neuronal circuits in human brain: insights into schizophrenia. Neuropsychopharmacology, 16(6), 375-84.


Laberge, S. (1980). Lucid dreaming as a learnable skill: a case study. Perceptual & Motor Skills, 51, 1039-42.


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Laberge, S. & Dement, W.C. (1982). Voluntary control of respiration during REM sleep. Sleep Research, 11, 107.

Maquet, P., Peters, J.M., Aerts, J., Delfiore, G., Degueldre, C., Luxen, A., & Franck, G. (1996). Functional neuroanatomy of human rapid-eye-movement sleep and dreaming. Nature, 383,163-166.

Mota-Rolim, S.A., Pantoja, A., Pinheiro, R.S.E., Camilo, A.F., Barbosa, T.N., Hazboun, I.M., Azevedo, C.A., Faber, J., Araujo, J.F. & Ribeiro, S. Lucid dream: sleep electroencephalographic features and behavioral induction methods. Presented at the I Congresso IBRO/LARC de Neurociências da América Latina, Caribe e Península Ibérica, 2008.

Muzur, A., Pace-Schott, E.F. & Hobson, J.A. (2002). The prefrontal cortex in sleep. Trends in Cognitive Science, 6 (11), 475-81.

Semkovska, M., Bédard, M.A. & Stip, E. (2001). Hypofrontality and negative symptoms in schizophrenia: synthesis of anatomic and neuropsychological knowledge and ecological perspectives. Encephale, 27(5), 405-15.

Tang, H., Sharma, N., Whyte, KF. (2006). Lucid dreaming during multiple sleep latency test.Sleep Medicine, 1, 2.

Van Eeden, F. (1913). A study of dreams. Proceedings of the Society for Psychical Research.26. 431-61.


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