domingo, 3 de março de 2013

Os paradoxos do amor no mundo contemporâneo



Capítulo 33 do livro
Filosofando
de Maria Lúcia de Arruda Aranha e
Maria Helena Pires Martins
editora Moderna – 1986
“Na sociedade contemporânea, fala-se e escreve-se muito sobre sexo e quase nada sobre o amor. Talvez seja pelo fato de que o amor, sendo um engimga, não se deixa classificar, repelindo toda tentativa de classificação ou definição. Por isso, a poesia, campo mítico por excelência, encontra na metáfora a compreensão melhor do amor.Realmente, a literatura nunca deixou de falar do amor.
Talvez este vazio conceitual se deva à dificuldade de expressão do amor no mundo contemporâneo. O desenvolvimento dos centros urbanos criou o fenômeno da “multidão solitária”: as pessoas estão lado a lado, mas suas relações são de contigüidade, relações que dificilmente se aprofundam, sendo raro o encontro verdadeiro. Talvez o falar muito sobre sexo seja uma tentativa de camuflar a impessoalidade fundamental dessas relações, na medida em que o contato físico simula o encontro.
No entanto, não só as relações entre duas pessoas se acham empobrecidas. O afrouxamento dos laços familiares – não importa aqui analisar as causas nem procurar a validade da situação – lançou as pessoas num mundo onde elas contam apenas consigo mesmas. (…)
Os paradoxos do amor

Vínculo x liberdade

O amor, sendo desejo de união com o outro, estabelece, no entanto, um tipo de vínculo paradoxal: o amante deve cativar para ser amado livremente. Podemos mesmo dizer que o fascínio é gerador de poder: o poder de atração de um sobre o outro. No entanto, tal “cativeiro” não pode ser entendido como ausência de liberdade, pois a união deve ser a condição da expressão cada vez mais enriquecida da nossa sensibilidade e da nossa personalidade. É fácil observar isso na relação entre duas pessoas apaixonadas: a presença do outro é solicitada na sua espontaneidade, pois são os dois que escolhem livremente estar juntos.
O amor imaturo, ao contrário, é exclusivista, possessivo, egoísta, dominador. Mas não é fácil determinar quando o poder gerado pelo amor ultrapassa os limites. Vimos que a força do amor está na atração que um exerce sobre o outro. Em que momento isso se transforma em um desejo de controlar, de manipular?
A sociedade capitalista, centrada no valor do “ter”, desenvolve formas possessivas de relação. O ciúme exacerbado é o desejo de domínio integral do outro. Marcel, personagem de Proust, inquieta-se quando varado de ciúme até dos pensamentos de sua amada Albertine. Só descansa quando a contempla adormecida…
Não queremos dizer que o ciúme não deva existir. Etimologicamente, ciúme significa “zelo”: o amor implica cuidado e temor de perder o amado. Portanto, se não desejamos o rompimento da trama tecida na relação recíproca e se o outro dá densidade à nossa emoção e enriquece nossa existência, sofremos até com a idéia da perda.
Vínculo x Alteridade
Há outro paradoxo no amor: ele deve ser uma união, com a condição de cada um preservar a própria integridade. Faz com que dois seres estejam unidos e, contudo, permaneçam separados.
O amor é o convite para sair de si mesmo. Se a pessoa estiver muito centrada nela mesma, não será capaz de ouvir o apelo do outro. É isso que ocorre com a criança, que normalmente procura quem melhor preencha suas necessidades. Quando esse procedimento continua na idade adulta, torna-se impedimento do amor verdadeiro. Basta lembrar a lenda de Narciso, que, ao contemplar seu rosto refletido na água, apaixona-se por si próprio. Isso causa sua morte, pois esquece de se alimentar, tão envolvido se acha com a própria imagem intangível. O narcisista “morre” na medida em que torna impossível a ligação fecunda com o outro.
Esse egocentrismo persiste na adolescência, como momento de passagem da vida infantil para a vida adulta. Por isso o adolescente muitas vezes não propriamente o outro, ser de carne e osso, mas ama o Amor. Trata-se do amor idealizado, romântico, um pouco fruto do medo desse lançar-se nas contradições do exercício efetivo do amor.
O exercício do amor supõe a descoberta do outro. Por isso o amor envolve o respeito, não no sentido moralista que rotineiramente se dá a esse conceito, mas como temor resultante da autoridade imposta. Respicere, em latim, significa “olha para”, ou seja, o respeito e a capacidade de ver uma pessoa como tal, reconhecendo sua individualidade singular. Isso supõe a preocupação de que a outra pessoa cresça e se desenvolva como ela é, não como queiramos que ela seja. O amor supõe a liberdade, e não a exploração: o outro não é alguém de quem nos servimos. O amor maduro é livre e generoso, fundando-se na reciprocidade.
(…) O paradoxo da relação amorosa, colocada ao mesmo tempo como desejo de união e preservação da alteridade, dimensiona a ambigüidade em que o homem é lançado. Os sentimentos gerados também são ambíguos: são sentimentos de amor e ódio para com aquele que escolhemos conscientemente, mas de cuja escolha resultou o abandono de outras possiblidades…
O não saber viver nessa ambigüidade leva certas pessoas ou a procurar a “fusão” com o outro, do que decorre a perda da individualidade, ou a recusar o envolvimento por temer essa perda.
No entanto, o risco do amor é a separação. Mergulhar numa relação amorosa supõe a possibilidade da perda. Segundo o psicanalista austríaco Igor Caruso, a separação é a vivência da morte numa situação vital: é a vivência da morte do outro em minha consciência e a vivência de minha morte na consciência do outro.
Quando ocorre a perda, a pessoa precisa de um tempo para se reestruturar, pois, mesmo quando mantém sua individualidade, o tecido do seu ser passa inevitavelmente pelo outro. Há um período de “luto” a ser superado após a separação, quando, então, se busca novo equilíbrio.
Uma característica dos indivíduos maduros é saber integrar a possibilidade da morte no cotidiano da sua vida. E quando falamos em morte, nos referimos não só ao sentido literal, mas às diversas “mortes” ou perdas que permeiam nossas vidas. No entanto, nas sociedades massificadas, onde o eu não é suficientemente forte, as pessoas preferem não viver, para não ter de viver com a morte. Por isso, também, as relações tendem a se tornar superficiais, e é nesse sentido que o pesnador francês Edgard Morin afirma: “Nas sociedades burocratizadas e aburguesadas, é adulto quem se conforma em viver menos para não ter que morrer tanto. Porém, o segredo da juventude é este: vida quer dizer arriscar-se à morte; e fúria de viver quer dizer viver a dificuldade”

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